Friday, August 23, 2013

Há trinta e dois aninhos:

Era eu chavalito, e como qualquer chavalito naquela altura pensava, pensava eu que o meu pai era o maior pai do mundo, e que o carro dele (que calhava a ser um mini) era o melhor carro do mundo. Não que eu percebesse de carros, mas conhecia muito bem aquele em particular. Um mini beije amarelado, com o fundo pintado de laranja-vivo, com a matrícula a começar por CP-. Claro que sei o resto de cor. Aquele carro estava nas fotos tiradas em dia de praia em Paço-de-Arcos (lembram-se da bola de praia da Nívea?), estava nas fotos dos piqueniques na quinta da Bemposta, estava nas fotos dos pequenos passeios que conseguíamos dar.
Há trinta e dois aninhos deixou de estar. Como quase sempre, teria que ser da pior maneira possível. Não vou entrar em detalhes, mas ainda hoje me sinto devedor da boa-vontade e do desprendimento de pessoas de quem não sei o nome, de pessoas anónimas, de médicos, de enfermeiros, de pessoal auxiliar, das senhoras que faziam a limpeza, das cozinheiras - que nunca conheci - mas que faziam uma carne assada com esparguete magníficos, enfim, de toda a gente que, de algum modo, directa ou indirectamente, no cumprimento do dever ou por humanidade, contribuiram com a sua parte para algo que me é muito especial. Para um puto que partiu as duas perninhas, que andou engessado quase meio ano, a coisa foi relativamente simples: aceita-se a realidade como ela é, e vai-se crescendo com isso e a aceitar isso, interioriza-se e ganha a pátina da naturalidade.
Há oito dias fui à Torre. Dia quinze, dia de Volta na Serra. Subi, de Manteigas, na amiga do costume, e encurtando uma longa história, custou-me muito, foi-me muito difícil principalmente pela falta de treino nos últimos meses. Mas consegui, muito mais pela vontade do que pela capacidade. E lá em cima lembrei-me desses dias que começaram há trinta e dois anos atrás, e é claro que tinha mesmo que conseguir chegar lá acima. Afinal de contas, foi muita gente a ajudar.


Novo Código da Estrada

No Lisbon Cycle Chic, uma entrada para a análise Jurídica do novo Código da Estrada - Comentário às alterações das normas respeitantes à bicicleta, um texto muitíssimo bom da autoria do Pedro Galrinho Portela e, do ponto de vista de um leigo, aparentemente bastante bem fundamentado e cuja leitura recomendo vivamente a todos. É uma ajuda preciosa no sentido de entendermos correctamente a abrangência de cada uma das normas, a razão que presidiu à inclusão (ou não) de outras normas e as zonas cinzentas em que persistiu alguma ambiguidade (para melhoria futura, espera-se).
O que me fica da leitura deste texto - e de outros, com comentários e opiniões mais ou menos concordantes com o sentido destas alterações - é consistente com a minha experiência do dia-a-dia. Sou peão, utente de transportes públicos, automobilista ou motociclista e, sempre que posso, ciclista; o que sinto em cada um destes "papéis" é, acima de tudo, que o usufruto de um bem que temos que partilhar - as vias de comunicação - se faz quase sempre com uma postura de grande intolerância e desprezo pelos princípios da boa convivência cívica - e das normas instituídas. Não de partilha, mas de conquista do espaço individual, e é um erro em que todas as partes tendem a incorrer.
Relativamente aos princípios da responsabilidade (ou responsabilização) civil de condutores de veículos automóveis e às comparações com outras realidades de Países que estão alguns anos à nossa frente na diversificação de infraestruturas de comunicações (nomeadamente a Holanda) a questão afigura-se-me razoavelmente simples, e deriva em grande medida da necessidade da partilha do espaço público em zonas de coexistência de tráfego (ruas estreitas em zonas antigas das cidades, em que não seja possível reservar faixas para ciclovia). Em caso de um sinistro que envolva um automóvel e uma bicicleta, a responsabilidade NÃO é automaticamente do condutor do veículo automóvel; o princípio é, efectivamente, um pouco mais refinado e abrangente do que isso, e será algo semelhante a isto: cabe ao condutor do veículo coma capacidade de causar mais danos o ónus da prova de que fez tudo ao seu alcance para evitar o acidente. Aplica-se a camiões, carros, motociclos, ciclomotores, bicicletas e peões, se não estou em erro exactamente por esta ordem relativamente a todos os outros. É um princípio do ordenamento da partilha do espaço público em condições da maior igualdade possível por todos aqueles que o fazem. Ou seja, não preconiza direitos especiais a nenhum dos grupos de utilizadores do espaço público, mas sim o direito à utilização do mesmo por todos em iguais condições de segurança. Trata-se mais da imposição do dever do cuidado a todas as partes.
Parece-me contudo óbvia a necessidade de uma maior fiscalização por parte das autoridades. Muitos dos comportamentos irresponsáveis a que assistimos diariamente nas nossas estradas devem-se, acima de tudo, à tolerância social com comportamentos de risco ao volante - consumo de álcool, utilização de telemóveis e excesso de velocidade - e também à falta de fiscalização e à suavidade das penas aplicadas, factores que, quando conjugados, criam a imagem de um estatuto de impunidade de facto para com este tipo de comportamentos.